Imagine você mãe, se vendo, de uma hora para outra, viúva. Ou então, mesmo sem ser casada com o pai dos seus filhos, tendo que dar a notícia para as crianças que ele morreu.

Recentemente um grande amigo da nossa família faleceu de forma inesperada. Ainda a dor da perda é muito latente. Ele era um pai especial, com certeza o melhor pai do mundo para a sua filha de 4 anos. Então fiquei me perguntando, como contar para uma criança que ela perdeu o pai? Como voltar a rotina, o que esperar, como tornar viva a memória do pai?
Para construir esse post falei com duas mães que estão passando por essa situação. Além de viver a sua própria perda, ter que enfrentar a sua dor, precisam ensinar os filhos a lidar e conviver com esse tema. Com certeza são mulheres especiais, que tem muito a contribuir com outras pessoas que estão passando pela mesma situação.
Também conversei com a psicóloga Ana Reis, que é fundadora e coordenadora da Rede Luspe (Instituto de Psicologia Especializado em Luto e Perdas), que fica em Caxias do Sul. Colaborou ainda com as informações a psicóloga Manoela Michelli, que é responsável na Luspe pelo atendimento em luto e perdas na infância e adolescência.
Para facilitar a leitura farei o seguinte. Contarei individualmente a história de cada uma delas e depois listarei algumas informações passadas pelas psicólogas sobre o tema.


Depoimento de Carol de Brum Maciel, 36 anos, mãe de Rafaela 3 anos, esposa de Marcus Maciel, 40 anos, que faleceu no dia 22 de setembro de 2014. 

A dor da perda: Quando o pai da Rafa, o Marcus Maciel, morreu ela tinha apenas 1 ano. Ele adoeceu e rapidamente faleceu, aos 40 anos. Ela acompanhou a doença, um câncer nos rins, foi levada para vê-lo no hospital, enfim ficou a par de tudo. Porém, na época, ela ainda nem falava, era um bebê. Não tinha como chegar e dizer: Rafa o papai morreu, pois ela não sabia falar, não entendia. Mas a Rafa sempre esteve junto em todo o processo. Eu a levei junto ao velório. Voltamos para casa só eu e ela, não tinha mais o papai. Ela foi fundamental para eu me manter forte. Não podia chorar, nem estar triste, pois ela continuava a brincar, correr e ser criança como qualquer outra.

A raiva: Aos poucos, conforme ela foi começando a falar, fui contando que o papai havia ido morar no céu. Mas ela não dava nenhum retorno, nem fazia nenhuma pergunta. A primeira vez que um casal com filhos veio em nossa casa, ela comentou algo sobre o amigo ter papai. Falei que ela tinha papai, mas não estava conosco. Havia ido morar no céu, e então ela ficou muito revoltada e começou a chorar e dizer: não, eu não tenho papai. Percebi uma revolta. Então conversei melhor com ela. Expliquei que o papai ficou muito doente e morreu, mas que ele não queria ter morrido, queria muito estar com ela, que quem ela mais amava no mundo era ela. Depois dessa conversa que ela entendeu que o papai não “abandonou” ela, que não podia estar ali, Rafa mudou completamente sua maneira de agir sobre ele. Começou a falar do papai, à vezes manda mensagem de voz para o Marcus, o desenha…

Procurando ajuda: Quando a Rafa tinha 2 anos iniciei a adaptação dela na escolinha, mas não aceitou ficar. Tinha medo da separação da mãe. Tentamos por 8 meses, trocamos de escola, mas nada funcionava. Ela chorava sem parar. Então a professora orientou procurar uma psicóloga especializada em criança. Fomos. Ela explicou que assim como o pai um dia não voltou mais, a Rafa tinha medo de ficar lá na escola e não e eu não voltar, tinha fobia de separação. Fizemos um trabalho de 6 meses e a Rafa conseguiu ir para escola.

A memória do pai: Logo que o Marcus faleceu minha maior preocupação era o fato de que a Rafa era muito pequena e não iria lembrar do pai. Então uma colega (Carol é pediatra) psiquiatra me falou que a lembrança se constrói. Que era importante falar sempre do pai, como ele era, o que ele gostava, como ele agiria em determinadas situações. Enfim, que com isso construiríamos com ela uma lembrança do pai. É assim que faço, ela já sabe muito sobre ele. Ela está construindo suas imagens através de fotos, vídeos, nossos relatos…

Como os outros podem ajudar: A ajuda da família e amigos é fundamental para tentar manter a rotina da criança o mais próximo da normalidade. Muitas vezes as pessoas me dizem que não ligam ou não visitam, pois não sabem o que falar. Na verdade, tudo que quem está enfrentando essa situação precisa é de ajuda. As pessoas precisam não ter medo de ajudar. Devem ligar para conversar, nem que seja sobre o clima! (risos) Devem ir visitar, ficar junto.

Depoimento de Inajara Oliveira, 40 anos, mãe de Luana Lazzarotto, 8 anos, esposa de Cleovaldi Pedro Lazzarotto, 61 anos, que faleceu no dia 21 de abril de 2015. 

A dor da perda: Numa consulta de rotina a dermatologista, Cleovaldi recebeu a má notícia que tinha um melanoma, um tipo de câncer de pele. Então fomos indicados para um médico oncológico e a partir daí começou a jornada de exames e consultas. Lutamos nove meses, no qual a partir da extração da verruga tudo começou a mudar. Fez duas cirurgias para eliminar a doença que corria pelo corpo, aliviando as dores e o mal estar, mas assim que melhorava por uns dias, a doença se manifestava deixando desabilitado totalmente. Luana, na época com 6 anos, percebia tudo e eu explicava que papai estava muito doente, e que nós precisávamos ajudá-lo, não fazendo muito barulho e deixando descansar.
Entre idas e vindas de hospital, Luana ficou sob os cuidados de minhas amigas, foram pessoas muitos especiais, que sou grata até hoje, pelo apoio que deram para mim e a Luana. Nessa fase, expliquei para ela, o motivo dessas mudanças de rotina, mas que precisava ser forte para ajudar o papai e a mamãe, pois eu precisava ficar cuidando do papai agora.
Todas as vezes que baixava hospital, dava um jeito de levar a Luana para ficar com o pai, isso a deixava mais segura que ele estava ali. Mas infelizmente o pior aconteceu, e a má e inesperada notícia chegou, a gente nunca espera a morte.

A despedida: Então, a Dra. Virginia Toni Felippetti, uma grande pessoa de coração abençoado, ofereceu ajuda para mostrar a Luana o que estava acontecendo. Buscou ela na minha residência, enquanto eu continuava no hospital , e começou a explicar para Luana que o papai dela estava muito, muito cansado, e que iria descansar, dormir e não mais acordar, perguntou para ela se queria ir vê-lo, e que a acompanharia, para poder se despedir do papai, pois ele iria entrar num sono profundo e não acordaria mais, e no céu viraria uma estrelinha.
Assim aconteceu, Luana chegou com olhar esbugalhado, me dizendo agora o pai foi né mãe? (“ foi” é como se ele fosse embora), disse sim filha. Colocamos uma cadeira perto da cama dele, ela subiu o olhou, mas tinha medo, dizia: mãe, mas não parece o pai, acho que não é ele. A Dra. Virginia explicou que era o papai sim, e que ele estava assim cheio de aparelhos por que estava dormindo, e precisava para respirar, mas que ele não abriria mais os olhos para vê-la. Choramos muito, ela dizia que ele seria uma estrelinha então?.. Virginia dizia a ela que sempre que sentisse saudades era para olhar para o céu, e a estrela que brilhasse mais forte, seria ele olhando para ela.

O velório: Fizemos o enterro na cidade natal dele, em Guabiju. Num momento do velório busquei a Luana que estava com os primos, e expliquei que seria a despedida, olhou com receio para o caixão e disse: mãe esse é um boneco que colocaram no lugar do pai, porque ele já subiu para o céu. Na cabeça dela, o pai foi de corpo e alma, tipo subiu para o céu com o corpo. E que aquele seria um boneco, não consegui desfazer o pensamento dela, para não sofrer mais. Deu um tchau para o pai, e voltou para casa dos priminhos. Não a deixei ir ao enterro, porque o sofrimento do fechamento do caixão é algo doloroso e marcante.

A não aceitação e a procura por ajuda: O retorno para casa sem o pai, e esperar ele entrar pela porta de casa e não vê-lo, começou a jornada e a não aceitação da morte. Ela achava que ele ainda voltaria para casa. Sempre me pergunta: porque o pai nos deixou? Não aceitava e não entendia porque ele teve que ir embora agora, veio um turbilhão de porquês.
Tivemos acompanhamento psicológico, por alguns meses, até a compreensão que ele não nos abandonou, mas que estava doente. Com essa informação que doença levaria a morte, eu não podia nem espirrar, que ela me dizia: você não vai morrer né mãe? Apavorada! Para ela todo mundo iria morrer a qualquer momento. Trabalhamos muito o psicológico dela, expliquei muito, e muito sobre a morte e as doenças, até conseguir ganhar alta da médica. Hoje ela entende mais e é mais forte, porque falo para ela, que a família não acabou como ela dizia, que nós duas somos uma família, e que a gente ajuda uma a outra, que somos meninas fortes!

A memória do pai: Temos muitas fotos do pai pela casa. Também sempre lembro a Luana de lugares que estivemos juntos. Ontem fomos no Clube Guarany e lembrei que uma vez nós dois tomamos chimarrão lá, enquanto ela brincava no parquinho. A lembrança é constante. Sempre falo dele e digo que ele sempre será o pai dela, quem ninguém vai substituir. Ela tem um único pai, que está no céu e cuida de nós lá de cima. Ela consegue falar dele sem dor, com carinho.

ENTREVISTA COM A LUSPE

Entrevista com as psicólogas Ana Reis e Manoela Michelli, da Luspe (luspe.com.br) sobre como a mãe ou cuidados pode ajudar a criança que perde um ente querido. 

Falando de morte: Falar sobre a morte para a criança representa não deixá-la de fora do vínculo de confiança familiar, uma vez que a morte é algo que afeta a todos na família, trazendo mudanças internas e externas. É difícil para a criança sentir a dor da perda sozinha, mais difícil ainda se vier a sentir-se excluída. O risco do excesso de protetividade adulta pode ser a exclusão da criança do sistema vincular, portanto afetivo familiar; “Se você me conta o que acontece com você e com todos, tenho mais chances de me sentir coerente e seguro, com você”.

Dicas de livros para auxiliar a criança nesse entendimento:
• Resolvendo Problemas juntos, da autora Marge Heegaard e da Editora Artmed. Onde a autora trabalha com desenhos que a própria criança faz sobre o ciclo de plantas e animais. Assim o processo artístico permite às crianças ir compreendendo o ciclo da vida com exemplos do seu cotidiano normativo.
• Quando alguma coisa terrível acontece; As Crianças podem aprender a lidar com situações traumáticas, da autora Marge Heegaard e da Editora Artmed. O livro tem por objetivo a ajudar as crianças a entenderem e lidar com seus sentimentos relacionados a perdas e mudanças. Ao desenhar a criança vai entendendo o tamanho, a gravidade e a intensidade de seus sentimentos e assim as possíveis formas de lidar com eles.
• Quando alguém especial morre; As crianças podem aprender a lidar com a tristeza, da autora Marge Heegaard e da Editora Artmed. Este livro foi especialmente criado para crianças entre 6 e 12 anos, para ser desenhando de forma livre pela criança com os seus conceitos de morte e luto.
• O dia em que o passarinho não cantou. De Mazorra, Luciana e Tinoco, Valéria. Contam a história de uma menina que perdeu seu animal de estimação, que é uma experiência bastante comum para a criança, que lhe causa muito sofrimento e que a coloca em contato com a questão da morte, podendo levar ao questionamento de outras situações de perda e de morte.
• Quando os dinossauros morrem. De Laurie Krasny Brown. O livro pode servir como um ponto de partida para uma conversa, num clima de envolvimento, participação, solidariedade e afeto.
• A história de uma folha. De Léo Buscaglia. Conta como as folhas mudam com a passagem das estações, iluminando de modo sensível e coerente o outono como a estação da morte.
• Ficar triste não é ruim. De Michaelene Mundy.
• Quando seu pai ou sua mãe morrem. De Daniel FitzpatrickG.

A vida sem o pai: A criança não conhece o mundo sem os pais, o processo de luto exigirá que a internalização dos pais aconteça como uma urgência, o que poderá gerar um amadurecimento repentino reforçado pelo enfrentamento de todas as outras dificuldades implicadas no processo. Porém, o que se entende por trauma aqui não sentencia o desenvolvimento infantil negativamente. Ao contrário, o luto como amadurecimento na experiência do cuidado familiar poderá tornar-se fortalecedor como um processo valoroso de desenvolvimento de autoestima, cuidado com outros, assim como um conjunto de valores que venham a sustentar e preservar a vida como um todo. Logo, vale lembrar que as crianças administram o luto com muito mais plasticidade que os adultos. Normalmente, os adultos é que complicam as coisas para elas.

Ritual fúnebre: Quanto à participação das crianças no ritual fúnebre: em primeiro lugar, devemos noticiar a morte para a criança, preferencialmente em casa. Alguém que ela ame e confie deve contar, evitando o uso de metáforas. A seguir, explica-se de maneira simples o que está acontecendo no momento, e depois de escutá-la, acompanhando com naturalidade e aceitação suas reações, propomos a ela pensar se desejaria participar do movimento de despedida (velório). Se a criança concordar, para reduzir a angústia que poderá sentir a partir do que verá, sugere-se antecipar a ela uma descrição rápida da sala velatória, incluindo a noção de que o corpo estará deitado em uma urna e a ideia de que lá os adultos estarão tristes e emocionados, pois também sentirão saudades. Ainda considerando as reações dos adultos, pode ser facilitador para a criança ir ao velório evitando a abertura da sala velatória, e o momento em que a urna é fechada (reduzindo o impacto e o medo que a criança possa vir a sentir, pois estes são momentos do ritual de despedida em que os adultos tendem a se emocionar mais). É muitíssimo importante não forçar a criança a fazer coisas que não queira, como tocar ou beijar a pessoa falecida, ir ou não à escola no dia etc. Bem como, ao longo do processo de luto, recompensá-la com presentes ou realizar rapidamente novas mudanças (escola, endereço, doar os pertences da pessoa falecida…) sem que participe ou dê-se por conta. Evitar ou impedir que a criança saiba da morte e participe do processo de luto familiar é correr o risco grave de excluí-la, abandonando-a em sua dor e dúvidas. De modo geral, podemos pensar no luto como um tempo de necessidades especiais (Parkes), que, num jogo de luz e sombras, vai nos re-velando. Se, primeiramente, nos sentimos incompletos pela separação, mais tarde alcançaremos identificações e introjeções de quem amamos, mais integrados e fortalecidos. Instrumentalizados para reconstruir sentido e viver inclusive no caos inicial das mudanças.

Mudanças no comportamento: Diante da perda pela morte de uma pessoa amada, a criança ou o jovem pode apresentar mudanças no seu comportamento. Entre as mais comuns estão:
– queda no rendimento escolar;
– agressividade e insegurança;
– euforia, apatia, distração;
– tristeza, depressão e medo;
– excesso ou ausência de sono e fome;
– sensações de abandono e culpa;
– desejo de se isolar;
– queixas de dores no corpo e de cansaço.

Os sintomas devem ser acompanhados, em geral são normativos e esperados num período de dois anos após a perda. Ocorrem em uma dinâmica de oscilações. As oscilações são positivas, pois indicam que o processo de elaboração está fluindo. Devemos nos atentar quando sintomas muito específicos se enrijecem repetindo-se causando limitações ou bloqueios em alguma dimensão do funcionamento infantil ou adolescente, tais como: crises de pânico; anorexia; dificuldades para sair de casa ou ir a escola; horas de sono excessivamente reduzidas ou estendidas. Nesses casos, importante buscar o auxílio psicoterápico especializado.

Dicas no cuidado da criança enlutada:

• Tente manter a rotina da criança, manter os horários normais, sempre que possível, ajuda a restaurar o sentido de estabilidade e segurança: a rotina sempre indica que o previsível está voltando e isso alivia.
• O luto pode ser reativado em diferentes momentos da vida, sendo processado ao longo de sua estruturação psíquica. Atentar-se para estes movimentos de rememoração.
• Cuidado com o pacto de silêncio – por menor que a criança seja ela percebe o que está acontecendo e é comum que sofra em silêncio, por receio de entristecer os familiares com sua dor.
• Acredite na força interna da criança e em seus recursos. Autorizando a criança a realizar e buscar acompanhamento e apoio, também da sua forma. Não se surpreendendo com reações aparentemente sem emoção ou impróprias, respeite o tempo da criança.
• A criança experimenta a dor no seu próprio ritmo.
• Toda a família deve falar a mesma linguagem.
• Não use metáforas, nem tente proteger a criança dizendo “viajou”, “está dormindo”, “mora no céu”, “virou anjo, estrela ou fadinha” …
• Respeite o desejo da criança com relação ao ritual, missas, as coisas do falecido, etc.
• Não force a criança a nada.
• Quando der informações prepare a criança se necessário para o que ela irá viver.
• Não dê notícias difíceis em qualquer lugar, observe se ela está alimentada, segura e tranquila, alguém que ela confie deve dar as notícias …
• Mantenha alguém que a criança goste e confie disponível a criança.
• Evite sempre que possível mudanças paralelas à morte para a criança. Tais como: mudar de endereço, escola, planos … Preserve a permanência e a rotina da criança.
• Reafirme constantemente que ela é amada, está segura, elogie-a.
• Compreenda e seja continente a raiva e inquietação (comum nas reuniões de família).
• Dê especial atenção às lembranças, sensações e sentimentos da criança.
• Ofereça limites equilibrados, não as recompense ou proteja por ter vivido a perda.
• Não tente substituir a pessoa falecida. A criança precisa viver, compreender, tolerar e fortalecer-se com a falta.
• Busque auxílio profissional se perceber que a criança coloca-se em comportamentos de risco ou excede na sintomatologia normal, causando dano a si mesma.

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